Marcas do desastre nuclear de Fukushima vão desaguar no mar
JAPÃO Marcas do desastre nuclear de Fukushima vão desaguar no mar Apesar da oposição regional, o Japão vai despejar no Pacífico mais de um milhão de toneladas de água da central nuclear. Foi tratada, mas peritos não estão descansados Salomé Fernandes “Será esta neve radioativa?” Foi o pensamento que assaltou a mente de Saeko Uno, ex-moradora de Fukushima, quando olhou para o céu, ao sair da cidade, durante a noite de 11 de março de 2011 e viu pequenos flocos de neve a cair. Passaram mais de 12 anos desde que um sismo de magnitude 9,0 na escala de Richter abalou o Japão. Ao sismo seguiu-se um tsunami e a tragédia continuou a agravar-se, num dos piores desastres nucleares de que há memória. Morreram mais de 18 mil pessoas e mais de 150 mil viram-se forçadas a abandonar a zona. A neve e as baixas temperaturas foram apontadas como dificuldade acrescida às operações de resgate. Saeko Uno vivia com o marido, a filha de quatro anos e dois gatos. Quando soube, à noite, que o fornecimento de energia na central nuclear de Fukushima Daiichi ainda não estava reposto e se previa que as barras de combustível estivessem danificadas, tomou a decisão de sair da cidade. “Acho que fiz parte do primeiro grupo a decidir sair. Foi o facto de estar a trabalhar no tema de energia nuclear e com uma criança pequena que me ajudou a tomar essa decisão”, conta ao Expresso, por escrito. O acidente nuclear não deixou apenas memórias. Há danos que ainda se fazem sentir. Em média, são produzidos diariamente mais de 100 mil litros de água contaminada, depois tratados e armazenados. Dados da companhia Tokyo Electric Power (Tepco), operadora da central nuclear de Fukushima, indicam que em janeiro existiam 1066 tanques com capacidade para 1,37 milhões de metros cúbicos sendo que já estão armazenados cerca de 1,32 milhões de metros cúbicos de água tratada. O Governo japonês anunciou, em janeiro, que pretende despejar mais de um milhão de toneladas desta água no Pacífico já na primavera ou verão deste ano. Tóquio pediu à Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) para avaliar o plano de descarga de água contaminada no oceano, mas a decisão foi anunciada antes de existir um relatório final da AIEA, esperado ainda este ano. Este mês, a agência publicou novo relatório de acompanhamento, em que afirma não serem necessárias mais missões técnicas ao país antes de chegar a uma conclusão. “O grupo de trabalho ficou satisfeito por as nossas observações terem sido tidas em conta e estarem refletidas nas revisões de documentos fundamentais como a avaliação de impacte ambiental radiológico”, explicou o líder do grupo, Gustavo Caruso, num comunicado. A AIEA considera ter havido “progresso significativo” entre a primeira e a segunda visitas ao país. Avaliar os riscos A água usada desde o acidente nuclear para arrefecer os reatores na central passa por um sistema de filtração conhecido por Sistema Avançado de Processamento de Líquidos (ALPS, na sigla inglesa), que retira a maioria da radioatividade antes de ser armazenada, explica a AIEA. O mesmo acontece à água subterrânea e da chuva que entra em contacto com substâncias radioativas e fica contaminada. No entanto, o sistema não consegue retirar o trítio uma forma radioativa de hidrogénio difícil de eliminar da água , que a entidade indica existir em baixa concentração na água de Fukushima Daiichi. O Ministério dos Negócios Estrangeiros japonês observa que a água que será despejada é tratada de forma a assegurar que “os materiais radioativos, à exceção do trítio, correspondam aos padrões regulamentares de segurança”. Antes de ser libertada, será diluída de modo a que até o trítio esteja em quantidade inferior aos limiares de segurança. Está previsto que as descargas se prolonguem ao longo de três décadas, com concentração máxima de 1500 becquerel (decaimento radioativo por segundo) por litro. Pedro Ferreira, professor no Departamento de Física do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa, ajuda a pôr este número em perspetiva. “A radioatividade do corpo humano normal de um adulto é da ordem de 3 mil decaimentos por segundo para o corpo inteiro”, explicou ao Expresso. Também as paredes das casas e os alimentos que se consomem têm um grau de radioatividade natural. O académico explica que este tipo de descargas não é fenómeno exclusivo de Fukushima e que a vasta maioria das centrais nucleares acaba por libertar água tratada. Não expressa preocupação com o plano do Japão. “Assim que a água entra no oceano, esperaria que com correntes e a ondulação normal não ficasse tudo na mesma zona, esperaria que este trítio começasse a dispersar-se”, observou. Ressalvando não ser perito na distribuição de radioatividade nas correntes oceânicas, Pedro Ferreira antecipa que com uma libertação faseada da água esta se dilua no oceano “de forma natural” e que, com o trítio abaixo dos limites, “não haja perigo para a vida humana ou para a vida animal”. “Temos a garantia de que a AIEA está a acompanhar isto. A aparência que dá é que está a ser bem acompanhado e estão a ter muito cuidado com o que estão a fazer, fiando-nos nas informações que estão a ser postas cá para fora”, nota Ferreira. Também o investigador Rui Silva, do Departamento de Física da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, considera que o processo ser acompanhado pela AIEA transmite confiança. No entanto, entende que faltam simulações sobre a forma como o trítio vai ser largado para o oceano. Acumulação é preocupante “Há uma parte de certa forma aleatória, que vai depender das correntes marítimas e da profundidade a que o trítio se vai diluir. A grande questão é se, por exemplo, pode acumular-se numa bolsa num fundo marítimo ou zona de corrente em que está a circular. E os efeitos da acumulação do trítio é que são preocupantes”, alerta Rui Silva. Apesar de reconhecer que “os riscos são baixos” o investigador descreve que a “história dos acidentes nucleares está cheia de coisas de probabilidade baixa que acabaram por ter um efeito negativo”. A água contaminada será enviada para o oceano através de um tubo subaquático com cerca de um quilómetro de comprimento, sendo que descargas localizadas “potencialmente aumentam a probabilidade de efeitos cumulativos de radiação” em determinadas zonas do mar. Quando o Japão expressou, em 2021, a intenção de libertar água para o oceano, o diretor da AIEA disse que o método escolhido “é tecnicamente viável e está em linha com a prática internacional”. No entanto, a medida não reúne consenso. A China está entre os países insatisfeitos. O diretor-geral do departamento de controlo de armas do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês declarou que “o Oceano Pacífico não é o esgoto do Japão para descarga de água nuclear contaminada”. Sun Xiaobo defendeu que, havendo impacto além das fronteiras do Japão, não se trata de um “assunto privado”. Em janeiro, o Fórum das Ilhas do Pacífico pediu a Tóquio para atrasar os planos por preocupações com o impacto na pesca que são partilhadas pela indústria piscatória japonesa. sfernandes@expresso.impresa.pt O desastre na central nuclear de Fukushima DaIichi aconteceu há 12 anos FOTO CHARLY TRIBALLEAU/ /AFP/GETTY IMAGES “Temos a garantia de que a AIEA está a acompanhar isto”, afirma o investigador Pedro Ferreira, do ISEL “Há uma parte de certa forma aleatória, que vai depender das correntes marítimas e da profundidade a que o trítio se vai diluir”, diz o investigador Rui Silva e ainda... ( Fukushima Águas da central nuclear despejadas no oceano P27